Um tsunami sanitário se abate sobre o planeta. Dotado ironicamente de alcunha típica d’um míssil de guerra, a Covid-19 (COrona VIrus Disease – 2019) e nos apresenta hoje como aquele inimigo número um a lançar, com rapidez e sincronia, milhões de enfermos aos nosocômios, inoculando desorganização e caos nos mais — ou notoriamente bem menos… — preparados sistemas de saúde dos estados nacionais.
Flagelo à saúde de muitos, o que por si só já seria dramático, a atual pandemia ganha, porém, requintes de crueldade em nossa sociedade global e hiperconectada, haja vista sua recomendada profilaxia. Ainda sem vacina ou alopatia comprovadas[1], a luta contra o Coronavírus, longe de exigir uma reação viril e de confrontação aberta, impõe-nos – independentemente da gradação que se decida escolher[2] – o desacelerar, o recolher-se, o #ficaemcasa. De bate pronto, o risco aparentemente restrito a um grupo alastra-se a toda coletividade. Fica claro que “O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte”[3]; de volta à nossa mais profunda humanidade por mais tecnológica seja a nossa civilização, fica claro que somos todos e um só ao mesmo tempo, a cultivar uma ética da responsabilidade[4].
Na esteira, pois, desse imprescindível “yoga coletivo” contra a disseminação exponencial do inimigo invisível, eclode um sem número de spill over effects, em especial à economia. Derrubada “por decreto”, o dinheiro rareia, investimentos e projetos desaparecem, o desemprego grassa, negócios jurídicos são suspensos ou incumpridos, e etc., tudo a ameaçar o travamento de cadeias produtivas inteiras, notadamente em sociedades marcadas pela organização capitalista. No Brasil, contas preliminares feitas, já se especula sobre um 2020 com queda de até -7,9% do PIB e desemprego bem acima de 30 milhões, com retomada crível apenas em 2021[5]. E tudo isto num ambiente pré-existente em que a mais de 50 milhões de cidadãos não são conferidas condições mínimas de vida digna[6].
Diante d’um cenário de quase “Armagedom” é preciso agir, rápido e nos mais diversos campos e frentes.
No âmbito jurídico, eis que, inspirados no exemplo da Lei Failliot[7], propuseram-se o ministro Dias Toffoli e o senador Anastasia, numa confluência institucional e intelectual, a pensar e estimular reflexões à concepção d’um projeto de lei (PL 1179/2020) capaz de balizar minimamente fundamentais questões das relações privadas durante esse período transitório e emergencial (e.g. prescrição e decadência, resilição, resolução e revisão contratual, locação de imóveis, concorrência e etc.).
Peculiaridades à parte, do exame do texto legal ora em tramitação na Câmara dos Deputados[8], sob a relatoria do Dep. Enrico Misasi, deixam-se extrair ao menos três características técnico-dogmáticas centrais.
A uma, o PL 1.179/20 se apresenta atrelado estritamente ao período de calamidade pública, i.e., reconhece-se o momento histórico urgente e único, sendo este, todavia, tanto a porta de entrada, quanto de imperativa saída desse regime de excepcionalidade de obrigações e direitos; nem mais, nem menos, sem maiores riscos da solidificação de precedentes espúrios ao funcionamento regular do ordenamento jurídico. A duas, não se cria, por assim dizer, direito novo. Adota-se, via de regra, uma cirúrgica suspensão de normas, o que evita elucubrações interpretativas e insegurança jurídica aos cidadãos. Por fim, alinhado à melhor tradição privatista, o projeto de lei busca catalisar a livre iniciativa, o entendimento entre as partes e a boa-fé objetiva. O direito, bem sabem os teóricos e melhores práticos, encontra grandes obstáculos existenciais e de enforcement em tempos de guerra e convulsão[9]. Em especial no caso das relações privadas, pretender regulá-las nos mínimos detalhes e com mão de ferro jurisdicional em tais épocas históricas é o primeiro passo à ineficácia jurídica.
O capítulo IX – DO REGIME CONCORRENCIAL, calcado em um artigo e dois parágrafos (v. art. 14) do PL 1179/2020, exsurge como um bom exemplo desse arquétipo de ideias[10].
D’um lado, nota-se uma clara preocupação do legislador em não retirar da autoridade concorrencial brasileira, a saber: o CADE, instrumentos para, se necessário, agir veloz e incisivamente para coibir qualquer abuso de posição dominante e/ou estrutura que, de algum modo possa representar risco ao melhor funcionamento dos mercados. Não fosse a tradição da Autarquia Concorrencial pátria, existente há mais de meio século e com festejada reputação, o projeto de lei do Sen. Anastasia de modo algum suspende a eficácia do artigo 36 da Lei 12.529/11, que delineia toda a estrutura repressiva do direito concorrencial brasileiro, tampouco do poder-dever do CADE de solicitar ao particular a apresentação, como ato de concentração, de qualquer nova estrutura, contratual e/ou societária que, formada por competidores com poder de mercado, possa desencadear efetivos riscos ao funcionamento dos mercados relevantes atingidos. Igualmente permanece a autoridade concorrencial munida de seus alargados poderes de investigação, intervenção e medida preventiva para atuar, se e quando necessário.
D’outro, o texto legal sob discussão proporciona ao particular uma clara mensagem no sentido de que, durante o período de calamidade pública: (i) consórcios, joint-ventures e acordos associativos são a priori juridicamente válidos e eficazes, independentemente de prévia autorização do CADE, estimulando-se, assim, negócios jurídicos que se prestem ao combate ou à mitigação econômica das consequências decorrentes da pandemia do coronavírus, ou seja, operações que possam tanto ajudar o Estado a enfrentar os enormes desafios sanitários existentes, quanto a reativar a combalida economia, salvar empregos e fomentar a arrecadação; e (ii) todas as avaliações do CADE sobre os atos praticados pelo particular deverão levar em conta as circunstâncias extraordinárias do momento. Trata-se de uma prudente regra de interpretação, na medida em que, não raro, processos e condutas são avaliadas pelas autoridades tempos depois das circunstâncias reais que as motivaram. O próprio CADE, há pouco mais de duas décadas, restou por longo tempo julgando e arquivando centenas de processos motivados pela então SUNAB (Superintendência Nacional de Abastecimento) por suposta infração ao tabelamento de preços, os quais, sem a visão específica do contexto, sequer fariam algum sentido prático.
Na melhor tradição aristotélica[11], ser virtuoso significa fazer a coisa certa, na hora certa, da forma certa. O PL 1179/2020 é, nesse passo, uma iniciativa virtuosa. Democrático, em timing apropriado e com comandos normativos claros e ponderados, trata-se de fundamental proposta legislativa em período emergencial, a qual vem a se somar a diversas outras ações lançadas ao enfrentamento do COVID-19; antes que seja tarde.
Gabriel Nogueira Dias é sócio do Magalhães e Dias Advocacia, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, Alemanha. Membro do Conselho da Fundação Hans Kelsen (República da Áustria).