Em 1966, Monroe Freedman respondeu afirmativamente àquelas que considera as três mais difíceis questões na advocacia criminal: (i) é apropriado proceder ao exame cruzado com o propósito de desacreditar testemunha que o Advogado sabe estar dizendo a verdade?; (ii) é apropriado permitir que o acusado preste depoimento, quando o Advogado sabe que ele cometerá crime de perjúrio?; (iii) é apropriado fornecer ao cliente orientação jurídica, quando há razão para crer que essa orientação vai induzi-lo a cometer delito de perjúrio? [1]
Exatamente quatro décadas após, Stephen Gillers publicou artigo científico dialogando criticamente com essas ideias de Freedman. [2]
Gillers inicia seu texto reconhecendo que o Advogado criminalista está vinculado a três deveres éticos, potencialmente conflitantes: (i) atuar com empenho pessoal, obtendo todas as informações úteis à defesa técnica do cliente; (ii) resguardar o sigilo profissional, só divulgando informações obtidas do cliente em benefício deste; (iii) exercer o dever de sinceridade (duty of candor), revelando ao julgador informações necessárias para prevenir ou remediar fraudes contra a administração da justiça criminal (v.g. perjúrio do acusado etc.).
Gillers critica a proposição de que o terceiro sobredito dever ético é subordinado aos dois antecedentes, pois caso o Advogado não consiga convencer o cliente a não cometer perjúrio, nem renunciar ao mandato, ele pode permitir o depoimento falso do cliente em juízo, sem incorrer em infração ético-disciplinar ou penal.
Nesse sentido, Gillers questiona a tese de que, caso prevaleça o dever de sinceridade sobre os demais deveres éticos do Advogado, este a rigor deve advertir o cliente, no início da entrevista reservada, que certas informações fornecidas podem ser futuramente reveladas ao julgador. Tal conjuntura encoraja tanto a omissão de informações pelo cliente, quanto a ignorância seletiva do Advogado, que tende a limitar o escopo das perguntas feitas ao cliente.
Para solução do trilema ético em digressão, Gillers propõe critério temporal, diferenciando o perjúrio antecipado (quando o Advogado toma conhecimento do perjúrio antes de o cliente depor em juízo) do perjúrio consumado (quando o Advogado fica ciente do perjúrio durante, ou após, o depoimento judicial do cliente).
No primeiro caso (perjúrio antecipado), Gillers entende que o cliente não tem direito a cometer perjúrio, nem à assistência jurídica para tanto. Assim, a questão do perjúrio antecipado não é propriamente uma questão legal, e sim política.
Gillers rejeita a ideia de que o Advogado pode permitir que o cliente cometa perjúrio, porquanto há diversos atos atentatórios à administração da justiça criminal que o Advogado não pode praticar: produzir documento ideologicamente falso, testemunha mentirosa etc.
Assim, o cliente que propositadamente sonega informações do Advogado, para poder praticar perjúrio, assume os riscos de: (i) deixar de se beneficiar do uso estratégico dessas informações pelo Advogado; (ii) ter a sua própria mendacidade exposta pelo exame cruzado do acusador.
Gillers também rechaça o argumento de que o Advogado deve advertir o cliente que, caso este confesse durante a entrevista reservada, não poderá negar a prática do crime em juízo. Isso porque não há necessidade de se informar ao cliente que o Advogado não pode cometer ilegalidade durante o patrocínio da causa.
Quanto à proposição de que o dever de sinceridade induz o Advogado a selecionar as informações obtidas do cliente, comprometendo a própria efetividade da defesa técnica, Gillers a caracteriza como sendo um non sequitur, que pode ser assim resumido: para que o Advogado atue com efetividade, ele deve ser cúmplice de perjúrio.
Nesse diapasão, caso o Advogado adote a tática de propositadamente se manter ignorante para poder burlar seu dever ético de sinceridade com o julgador, os regramentos deontológicos advocatícios não podem ser adaptados para acomodar essa tática.
Freedman e Gillers concordam em um ponto: o Advogado tem o dever ético de desencorajar a prática de perjúrio pelo cliente, recusando-se a prepara-lo para seu depoimento, alertando-o para os riscos do exame cruzado do acusador e da imposição de pena pelo perjúrio etc.
O problema se intensifica quando sobrevém dissenso. Ou seja: Advogado não quer que o cliente deponha em juízo (pois crê que ele cometerá perjúrio), porém o cliente está irredutível, por entender que o Advogado está errado, e a mera suposição de que o cliente mentirá é insuficiente para violar seu direito fundamental a ser ouvido.
A não ser que a posição do Advogado esteja baseada em uma confissão direta do cliente sobre sua intenção de mentir em juízo, a solução desse dissenso apresenta dificuldades consideráveis para o julgador. [3]
No segundo caso (perjúrio consumado), Gillers entende que os valores que Freedman quer proteger – a tutela da sinceridade na relação Advogado-cliente, e o desencorajamento da ignorância seletiva do Advogado – sofrem grau menos intenso de restrição.
Para tanto, Gillers afasta o argumento de que o direito ao silêncio (privilege against self-incrimination), previsto na V Emenda da Declaração de Direitos (no person shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself), impede a revelação ao julgador do perjúrio sobre o qual o Advogado tomou conhecimento com base em informações confidenciais.
Isso porque as declarações prestadas pelo cliente ao Advogado não são involuntárias, compelidas pelo Estado. O fato de o cliente ter motivação para ser sincero com o Advogado, e este ter o dever ético de encorajar tal sinceridade, não tem o condão de tornar as declarações do cliente involuntárias. O Estado não adota medidas coercitivas contra o cliente que se recusa a falar com seu Advogado.
Gillers também redargue que o Advogado que revela o perjúrio consumado ao julgador não está produzindo elementos probatórios, e sim revelando informações sobre fraude contra a administração da justiça criminal que ele involuntariamente auxiliou.
Por fim, Gillers invoca o precedente United States v. Apfelbaum, da Suprema Corte norte-americana. [4]
Nesse caso, o acusado invocou o direito ao silêncio ao depor perante grande júri (grand jury) federal, porém o Juiz lhe concedeu imunidade, com fundamento no título 18, § 6002 do US Code. [5] Após, ele foi acusado de prestar declarações falsas ao sobredito júri, tendo objetado quanto à admissão em juízo de quaisquer outras partes do seu depoimento imunizado, à exceção dos excertos imputados como falsos.
A Suprema Corte decidiu pela licitude probatória das outras partes desse depoimento imunizado, com fundamento de que nem a V Emenda da Declaração de Direitos, nem o título 18, § 6002 do US Code, proíbem a admissão em juízo de depoimento imunizado do acusado, para fins de persecução penal do seu falso testemunho.
O principal fundamento é que a proteção jurídica conferida pelo estatuto jurídico da testemunha imune é menos intensa do que aquela decorrente do exercício do direito ao silêncio.
Nessa toada, Gillers conclui que mesmo o testemunho exigido coercitivamente pelo Estado é admissível em juízo para comprovação da sua falsidade, à luz do direito ao silêncio. Portanto, a revelação pelo Advogado ao julgador do perjúrio consumado pelo cliente, com base em informações confidenciais, não caracteriza violação ao sobredito direito fundamental.
Esse debate acadêmico entre Freedman e Gillers é bem talhado para demonstrar a complexidade das variegadas questões éticas inerentes à advocacia criminal, motivo pelo qual se pretende revisita-las em breve.
[1] O raciocínio de Freedman é que hipotético regramento ético proibindo o Advogado de deixar que o cliente cometa perjúrio, ou impondo ao Advogado dever de revelar esse perjúrio ao julgador, ensejaria a erosão dos deveres éticos de propiciar ao cliente defesa técnica efetiva e de resguardar o sigilo profissional. Tal erosão caracteriza dano aos valores do sistema de administração da justiça criminal maior do que aquele causado pelo perjúrio (FREEDMAN, Monroe. Professional responsibility of the criminal defense lawyer: The three hardest questions, In: Michigan Law Review, n. 64, pp. 1.469-1.484, june 1966).
[2] GILLERS, Stephen. Monroe Freedman’s solution to the criminal defense lawyer’s trilemma is wrong as a matter of policy and constitutional law, In: Hofstra Law Review, n. 34, pp. 821-845, 2006.
[3] Caso o julgador considere a crença do Advogado como suficiente para inviabilizar o depoimento do cliente em juízo, na prática ele tornará o Advogado “juiz” da credibilidade do cliente, usurpando competência dos jurados. Caso o Juiz considere que a intenção do cliente prevalece sobre a posição do Advogado, colocará em causa a confiança inerente à relação Advogado-cliente. Caso o julgador exija que o Advogado revele o fundamento dessa crença, colocará em causa o sigilo profissional. A resolução desse dissenso é feita em procedimento incidental? Perante o mesmo Juiz da causa, ou outro Juiz? O acusado tem direito a ser ouvido nesse procedimento incidental? O acusado tem direito a ser assistido por Advogado independente? Qual é o standard probatório aplicável à intenção do acusado de cometer perjúrio?
[4] 445 U. S. 115 (1980).
[5] Nesse caso, o acusado não pode se recusar a depor com fundamento no direito ao silêncio, porém seu testemunho e quaisquer informações derivadas (direta ou indiretamente) do seu testemunho não podem ser usados contra ele em qualquer processo criminal, exceto em persecução por perjúrio, falso testemunho ou descumprimento da ordem de imunidade de outra maneira.
Diogo Malan é advogado criminalista, sócio do Mirza & Malan Advogados e professor da Uerj e da UFRJ.