Fabrício Motta: O INSS e a fila nossa de cada dia!

Fabrício Motta: O INSS e a fila nossa de cada dia!

Associação livre é técnica que, como diz o nome, visa fazer ligação entre uma coisa e outra de forma intuitiva, automática. Na psicanálise, consta que seria método utilizado pelo próprio Freud, em substituição à hipnose, para que o paciente dissesse livremente a primeira coisa que vinha à sua cabeça diante de alguma palavra ou situação. O que vem à sua mente quando lhe falo “arroz”, por exemplo? “Feijão”, responderiam muitos. Se o psicanalista perguntar a qualquer paciente atormentado no divã: “qual a primeira imagem lhe vem à mente ao ouvir “INSS”, dificilmente terá resposta diferente de “fila”. As filas se incorporaram à tradição dos órgãos públicos de assistência social – vide os extintos INAMPS e INPS – e também ao imaginário popular. Viraram peças integrantes do nosso cenário cotidiano; são utilizadas em analogias, piadas, músicas. Trata-se de algo tão típico e presente em nossa realidade que talvez poderiam até mesmo ser objeto de proteção enquanto patrimônio material, não fossem retrato fiel do descaso dispensado pelo Estado aos seus cidadãos.

Mesmo com sua aura de tradição, a fila no INSS é notícia na imprensa nacional. Matérias jornalísticas dão conta da existência de estoque de cerca de 2,3 milhões de pedidos de benefício aguardando análise, sendo que mais de 1,3 milhão aguardam resposta além do prazo legal de 45 dias[1]. Como consequência e tentativa de dar rápida resposta à crise, o Presidente da Autarquia foi exonerado[2]. Algumas possíveis causas dessa fila impressionante foram destacadas pelo noticiário: reforma da Previdência, cujo anúncio teria feito crescer o número de pedidos de benefícios; déficit de cerca de 11 mil servidores em razão de aposentadorias; aumento do fluxo mensal de pedidos em razão da facilitação de requerimentos por meio digital; necessidade de adaptação dos sistemas às novas regras de concessão de benefícios[3].

É aterrador perceber como estamos atrasados com relação à gestão de serviços públicos, inclusive previdenciários. Conhecer a labuta dos Procuradores Federais responsáveis pela defesa judicial do INSS é desanimador, quase uma viagem no tempo: o trabalho burocrático, repetitivo, exaustivo e excessivo é realizado desconsiderando a realidade de um mundo transformado pela inteligência artificial, por exemplo, cujas potencialidades permitiriam concentrar a força de trabalho cada vez menor e mais desmotivada em questões realmente estratégicas. Nossa previdência pública segue subindo pela escada, enquanto corporações, escritórios de advocacia e alguns cidadãos – mesmo os que pretendem fraudar o sistema – vão pelo elevador. A propósito, inteligência artificial não se confunde com automatização ou digitalização. Digitalizar documentos, realizar no computador os mesmos fluxos e processos que não dão certo materialmente (com papeis e pessoas) pode ser até interessante, mas não caracteriza propriamente uso de inteligência artificial[4].

Como justificar, atualmente, a falta de investimento – ou de eficiência e eficácia do investimento, se existir – na resolução dos graves problemas do INSS e de sua defesa judicial, por meio da tecnologia? Não se trata de algo retirado dos filmes de ficção ou de sonhos impensáveis, tampouco de iniciativa cujos custos exorbitantes somente poderiam ser cobertos por grandes grupos econômicos – pesquisa de excelência em inteligência artificial e aprendizado de máquina é realizado nas Universidades Públicas. Fico apenas em um rápido exemplo que conheço de perto: o DeepLearning Brasil, laboratório do departamento de informática da Universidade Federal de Goiás com reconhecimento internacional. Na UFG foi desenvolvido, por exemplo, um software inovador que prevê intercorrências em diabéticos com 6 a 8 meses de antecedência e com 96% de precisão[5]; a mesma UFG criou o primeiro curso de graduação em inteligência artificial do país. Certamente existem pesquisas e inovação de excelência em outras instituições e, enquanto o INSS vai navegando em sua jangada, o ensino público vai construindo aviões. INSS e AGU, autarquia e órgão federal, respectivamente, têm conhecimento do que é feito em inteligência artificial nas Universidades públicas federais, autarquias.

Feito a longa introdução ou desabafo, analisemos a juridicidade da primeira tentativa de resposta ao aumento das filas no INSS. A Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019, autorizou a contratação de militares inativos para o desempenho de atividades de natureza civil na administração pública federal. Prescreve o artigo 18 da referida Lei:

Art. 18. O militar inativo contratado para o desempenho de atividades de natureza civil em órgãos públicos em caráter voluntário e temporário faz jus a um adicional igual a 3/10 (três décimos) da remuneração que estiver percebendo na inatividade, cabendo o pagamento do adicional ao órgão contratante, conforme estabelecido em regulamento.

Parágrafo único. O adicional a que se refere o caput deste artigo:

I – não será incorporado ou contabilizado para revisão do benefício na inatividade;

II – não servirá de base de cálculo para outros benefícios ou vantagens; e

III – não integrará a base de contribuição do militar.

O Decreto Federal 10.210/20, por seu turno, regulamentou o dispositivo. O regulamento trata do procedimento de seleção e contratação de militares inativos, além da natureza e do regime jurídico da contratação, dentre outras questões administrativas operacionais. Não há qualquer referência específica ao INSS, mas somente a necessidade de definição prévia das atividades a serem desempenhadas.

O Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS é autarquia federal e, como tal, regida pelo direito público. Os servidores do INSS ocupam cargos públicos, criados por lei e providos por concurso público, à exceção dos cargos em comissão. Ao criar um cargo público, a lei automaticamente interdita o exercício daquele específico núcleo de atividades por outro regime jurídico. Por essa razão não se admite a terceirização de atividades previstas no quadro de pessoal de uma autarquia, por exemplo: a lei criou cargos, atribuiu-lhes regime jurídico específico e as atividades correspondentes somente poderão ser desempenhadas naquele mesmo regime. Além dos cargos públicos (efetivos e comissionados), existe outra possibilidade de exercício pessoal de atividades públicas nas autarquias: trata-se da contratação temporária por excepcional interesse público prevista pelo artigo 37, inciso IX da Constituição.

A contratação temporária por excepcional interesse público é matéria que atrai atenção pela rotineira utilização em todas as esferas de governo. Para sua utilização, a concorrência de requisitos é necessária: (a) previsão, em lei do ente federativo, de hipóteses que justifiquem a contratação; (b) duração previamente determinada dos contratos, sendo inconstitucional sua eternização; (c) presença de interesse público excepcional na contratação a ser realizada pela Administração.

A excepcionalidade do interesse público a ser atendido pode decorrer de sua natureza singular ou da forma de atendimento necessária, ou seja, a excepcionalidade pode dizer respeito à contratação ou ao objeto do interesse. A Lei Federal no 8.745/1993, por exemplo, traz em seu artigo 2o situações que exemplificam as assertivas acima: assistência a situações de calamidade pública, combate a surtos endêmicos, realização de recenseamentos e outras pesquisas estatísticas e admissão de professores visitantes. São situações nas quais o concurso público ou não é possível (em razão da urgência, por exemplo) ou não é necessário (em razão da duração delimitada no tempo) para preservação do próprio interesse público.

A situação de “calamidade” em razão do acúmulo de processos no INSS, em tese, pode ser admitida como excepcional e urgente ao ponto de ensejar a contratação de pessoas por prazo determinado, até que a situação se aproxime o mais possível da normalidade. Com boa vontade, seria até possível enquadra a situação na previsão do art.2º, VI, “i” da Lei 8.745/93, que autoriza contatação para desempenho de atividades técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho que não possam ser atendidas mediante a aplicação do art. 74 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990” (destaquei).

Contudo, não existe justificativa para que a contratação se limite aos militares inativos, tampouco para que recaia preferencialmente sobre os mesmos. Há uma distinção injustificável à luz dos princípios da isonomia e do interesse público: não há qualquer atributo técnico-profissional dos militares inativos que justifique tratamento preferencial para o exercício de atividades que não possuem qualquer correlação com as atividades militares. A pergunta automática que deve ter aparecido na mente de muitos é a seguinte: “por que não contratar aposentados do próprio INSS, que já conhecem as atribuições?”. Não há resposta razoável para essa e para outras perguntas. Além disso, como destacou o Ministério Público de Contas junto ao TCU, em representação formulada para apurar o tema, o militar reservista não é um aposentado qualquer: “O militar da reserva permanece em disponibilidade por prazos fixados pelos Comandos Militares – prazo esse que, atualmente, é de cinco anos. Durante esse prazo, o militar precisa estar em condições de atender a convocação do Comando Militar a que ele prestava seu serviço. O que parece é que a disponibilidade dos militares da reserva visa atender às possíveis necessidades das Forças Armadas, e não às necessidades de atividades de natureza civil – como a do INSS[6].

Não há amparo constitucional para contratação de militares inativos para o desempenho de atividades temporárias, de natureza civil, em órgãos públicos. Se existe situação excepcional que recomende contratação temporária, qualquer distinção que não seja justificada pelo próprio interesse público a ser atendido configurará não somente ofensa contra a Constituição como também mais uma protelação da resolução dos muitos problemas da autarquia previdenciária. O tempo passou, e “o futuro não é mais como era antigamente”, como cantou Renato Russo: uma alternativa aguardando sua chance é o aproveitamento da pesquisa de excelência das Universidades Públicas para realmente melhorar o serviço público.


[1] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/01/15/O-que-causa-a-fila-do-INSS.-E-quais-as-medidas-para-zer%C3%A1-la

[2] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bastidores-demissao-de-presidente-do-inss-e-resposta-a-incompetencia-para-resolver-filas,70003176320

[3] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/01/15/O-que-causa-a-fila-do-INSS.-E-quais-as-medidas-para-zer%C3%A1-la

[4] Com apoio nas lições de Darrel West e John Allen, Juarez identifica os elementos da IA: “ a ntencionalidade, pois o sistema algorítmico não opera de modo passivo, gozando de relativa autonomia para exercer tarefas específicas; a inteligência propriamente dita, uma vez que o sistema aprende numa sequência assemelhada à humana e, por último, a adaptabilidade, eis que ostenta a capacidade cognitiva de efetuar ajustes à medida que coleta vastíssimas informações”.

[5] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2019/05/12/estudante-da-ufg-desenvolve-programa-que-preve-piora-no-quadro-de-diabeticos-com-96percent-de-precisao.ghtml . Na Universidade está sendo desenvolvido um “robô entregador”: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/01/25/robo-entregadora-nova-funcionaria-do-ifood-nao-e-humana-e-se-chama-ada.htm?fbclid=IwAR0qTp-ok7qzp7HAnOP3-Jd0q5MXfP5dRABnyDNSD8cXon8MOi-5msLqdPE

[6] Processo nº 000.690/2020-1; representação apresentada pela Subprocurador-Geral Lucas Rocha Furtado.

Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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