Foi publicada no último dia 14 a Lei nº 13.988, que extinguiu o voto de qualidade no âmbito dos julgamentos administrativos. A partir de agora, havendo empate, o resultado a ser proclamado passa pela extinção do crédito tributário. Apesar das inúmeras polêmicas e dos bons argumentos para cada um dos lados dessa querela, trata-se de decisão correta por parte do legislador, que irá trazer maior equilíbrio para a conturbada relação entre Fisco e contribuintes em nosso país.
Antes de mais nada, o autor do presente texto não enxerga qualquer problema de legalidade na existência do voto de qualidade. O processo administrativo tem por resultado final a constituição definitiva do crédito tributário, podendo ser enquadrado como um ato que está inserido no poder de autotutela da Administração. Em outras palavras, trata-se de ato administrativo que decorre da própria dicção do artigo 142 do CTN, cuja competência é privativa da autoridade administrativa. Tal constatação irradia efeitos para além do Direito Tributário, como se verifica no verbete da Súmula Vinculante n. 24 do STF, que determina inexistir justa causa para a propositura de ação penal, nas hipóteses de crimes materiais contra a ordem tributária, antes do lançamento definitivo do tributo.
Isto é, só se tem crédito tributário definitivamente constituído (em um contexto de lançamento) ao final do processo administrativo. Nesse cenário, nada de errado existe na atribuição de peso maior aos votos proferidos por conselheiros que representam a Fazenda Pública. Afinal, tem-se uma decisão administrativa, proferida em cenário de revisão de um ato anterior, revestido de precariedade em razão do direito constitucional do contribuinte ao processo administrativo.
Inclusive por essas razões é que a Fazenda não pode ir a juízo questionar as decisões do Carf contrárias ao seu entendimento. A propósito, parece mesmo ser uma petição de princípio que decisão proferida por órgão integrante da estrutura do Ministério da Economia possa se revelar contrária aos interesses fazendários. O Carf é a própria Fazenda Pública e constitui o crédito tributário por meio de ato administrativo em última instância. Ou seja, a Fazenda não pode sustentar perante o Poder Judiciário a incorreção de uma decisão por ela mesma proferida. A questão, portanto, é de falta de interesse de agir.
De todo modo, se nada há de errado com o voto de qualidade, o mesmo pode ser dito em relação à sua extinção. Trata-se de decisão que compete ao parlamento, que exerceu, dentro dos limites, a sua função primordial, a de legislar. Ponderando as diversas razões de uma discussão que não possui certo ou errado, optou-se por extinguir créditos tributários cuja constituição tenha se encerrado diante de um ato administrativo objeto de empate.
Para que se possa avançar no debate e no intuito de fixar algumas premissas, o autor entende inaplicável ao caso o artigo 112 do CTN, aquele que prevê a necessidade de uma interpretação mais favorável ao acusado/contribuinte em caso de dúvida a respeito do conteúdo de uma lei tributária que define infrações e que lhe comina penalidades. Não é por isso que a inovação legislativa de agora se mostra adequada.
Em primeiro lugar, porque o pressuposto de aplicação do referido dispositivo é a presença de dúvida. E entende-se por dúvida uma situação individual, relativa à intimidade do aplicador da norma, o que se difere do empate. Tem-se dúvida quando o aplicador da norma se vê diante de fundamentos que apontam para soluções em sentidos diversos. Nessas hipóteses, prevê a legislação complementar que o resultado do processo hermenêutico deve conduzir a um resultado mais favorável ao contribuinte. No entanto, diante de um empate (que é uma situação matemática), o que se tem é uma equivalência de certezas em diferentes direções. Inaplicável, portanto, o artigo 112 do CTN ao voto de qualidade.
Em segundo lugar, porque o legislador faz referência a uma interpretação mais favorável ao acusado (o vocábulo utilizado não foi contribuinte) em um cenário de infrações e de suas penalidades. Claramente se está diante de uma norma atinente ao Direito Tributário Sancionador, que não se confunde com a ordinária subsunção de um fato à sua norma de regência. Dúvidas podem existir a respeito do enquadramento empreendido pela autoridade administrativa no contexto do lançamento, mas não necessariamente o caso será de infração/penalidade.
Dito isso, o autor propõe algumas reflexões a propósito da novel legislação. O principal ponto a favor da decisão tomada pelo Poder Legislativo diz respeito a um necessário aumento do equilíbrio na relação entre Fisco e contribuinte. A litigiosidade excessiva é por todos conhecida, motivo de preocupação por parte de investidores e não tem como única causa um suposto viés sonegador dos contribuintes brasileiros. Trata-se de um problema histórico, com raízes estruturais, que tem onerado o setor produtivo em níveis intoleráveis.
De forma mais concreta, o fim do voto de qualidade não irá se traduzir em necessária perda de arrecadação. A validade desse argumento dependeria de algumas premissas: I) que os autos de infração estejam sempre corretos; II) que os conselheiros representantes da Fazenda sempre votem a favor da manutenção das autuações; e III) que os conselheiros representantes dos contribuintes sempre votem pela improcedência das autuações. Se isso fosse verdade, o processo administrativo não passaria de um patético teatro. Mas não é esse o caso, felizmente. O Carf não é um órgão com finalidade arrecadatória, mas um valioso instrumento de controle de legalidade de atos administrativos, cuja principal virtude está na sua composição paritária, algo inerente aos princípios republicano e democrático.
O fim do voto de qualidade deverá atingir apenas os casos polêmicos, teses em que a polaridade revela uma incerteza maior na aplicação da norma. A inexistência do voto de minerva vai impedir que sejam mantidas autuações resultantes de julgamentos empatados. Basta pensarmos nos casos de ágio, objeto de uma controvérsia sem fim, que vem sendo resolvida pelo Poder Judiciário às custas de cartas de fiança e apólices de seguros, sempre suportadas pelos contribuintes. Qual é a lógica? O ato administrativo de lançamento termina empatado e o ônus recai inteiramente sobre o contribuinte? Não parece fazer sentido algum. O que o voto de qualidade gera é uma inversão de papeis. Se o ato administrativo de lançamento goza de presunção de legalidade, o empate no contexto de sua revisão deveria gerar o efeito contrário.
A Fazenda Nacional deveria se basear em estatísticas antes de bradar alto contra o fim do voto de qualidade. Qual o percentual de casos em que os julgamentos terminam empatados? Qual a natureza desses julgamentos? Estamos a falar de discussões mais fáticas ou mais jurídicas? Como a doutrina se posiciona em relação a essas teses? Como tem se comportado o Poder Judiciário? Trazer os dados para o debate o tornaria mais democrático, mais efetivo e menos ideológico. Não se pode argumentar com base na arrecadação (ou em sua possível perda), pois tributo devido não é aquele lançado, mas aquele cujo ato administrativo guarda correspondência com a legislação.
Serão naturais os argumentos de que a Fazenda poderá ir a juízo nesses casos (de derrota no caso de empate). Ainda que não se concorde com isso, pois o Carf não deixará de proferir decisões administrativas apenas porque a lei define a extinção do crédito tributário em caso de empate, ele merece ser discutido. De todo modo, ainda assim a relação Fisco-contribuinte estará mais equilibrada. Se antes os casos decididos pelo voto de qualidade iam parar no Poder Judiciário em razão de ações ajuizadas pelos contribuintes, agora eles talvez sejam levados por ações propostas pela Fazenda. Qual a diferença, então? A desnecessidade de que eventual judicialização imponha aos contribuintes o ônus da garantia, o que inviabiliza várias discussões e não raramente ameaça a própria existência dos contribuintes.
Para além disso, quem deve suportar o ônus da litigiosidade, que se torna ainda mais pesado devido à inegável morosidade do Poder Judiciário? Não podem ser apenas os contribuintes, especialmente diante de situações excepcionais, em que a revisão do ato de lançamento terminou empatada. Nesses casos, o estado de incerteza onera quem não pode tomar medidas para que os seus casos sejam julgados mais rapidamente e que se veem reféns de uma resposta jurisdicional. Como se sabe, a demora no recebimento dessa prestação pode levar à sua desnecessidade futura, impondo um ônus aos contribuintes que se reflete na geração de riquezas da sociedade e, claramente, repercute na arrecadação. A existência do tributo depende da riqueza gerada.
Uma última (e não menos importante) reflexão se faz necessária. Se o Brasil estivesse em um estágio mais avançado na construção de uma relação de confiança entre Fisco e contribuintes, talvez medidas como a extinção do voto de qualidade fossem encaradas com mais naturalidade. Não seria razoável — e aqui fica a pergunta — que se o voto de qualidade não fosse extinto, as discussões judiciais que dissessem respeito a tais decisões (tomadas pelo voto de minerva) não deveriam prescindir de garantias? Em outras palavras, o empate não deveria gerar a possibilidade de discussão em paridade de armas?
Enfim, diante dos fundamentos expostos neste breve ensaio, defende-se a pertinência do texto editado pelo Poder Legislativo e sancionado pelo presidente da República. Trata-se de passo importante no sentido de maior equilíbrio na conturbada relação mantida entre Fisco e contribuintes no Brasil.
Fernando Moura é sócio da banca Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, professor da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC), mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) e master of Laws (LL.M.) pela New York University (NYU).