Telles Vargas: A Lei da Liberdade Econômica e a teoria da imprevisão

Vera Chemin: Imparcialidade e decisões sobre audiências de custódia

Com a pandemia mundial ocasionada pelo coronavírus (Covid-19), inegavelmente se instalou o “estado de crise”. A situação socioeconômica é preocupante, com isto ressurgem antigas tarefas de interpretação e aplicabilidade do direito posto. As medidas de contenção e cautela recomendadas, do afastamento, isolamento social ao lockdown, já trazem reflexos financeiros negativos aos empresários, principalmente ao micro e médio empreendedor, bem como a maioria dos profissionais autônomos.

Neste cenário, urge a necessidade de se discutir a respeito da possibilidade de revisão e/ou resolução dos contratos civis e empresariais. A legislação civil vigente prevê a possibilidade de modificar as “regras” dos contratos civis e empresariais, medida aplicável quando acontecimentos extraordinários e imprevisíveis resultam no desequilíbrio da relação jurídica, tornando a prestação de uma das partes do contrato excessivamente onerosa.

Após a denominada Lei da Liberdade Econômica – Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 -, a qual teve origem na MP nº 876/2019 e posteriormente na MP nº 881/2019, foi inserido o artigo 421-A no Código Civil, que reforça a essência da teoria da imprevisão. Basicamente o recente dispositivo prevê a mitigação de consequências resultantes de situações excepcionais, que afetem de maneira significativa e tornem o contrato civil ou empresarial excessivamente oneroso. Na ocorrência deste cenário prestigia-se a adoção do artigo 479, o qual prevê  a renegociação das condições contratuais, sendo o artigo 479, uma das positivações da teoria da imprevisão no Código Civil de 2002.

A teoria da imprevisão é destaque entre os fundamentos legitimadores de revisão e/ou resolução de contratos. Sua aplicação carece de análise casuística, principalmente da natureza da relação e suas peculiares consequências, mas basicamente tem a finalidade de evitar o desequilíbrio contratual nas relações jurídicas. A base da teoria da imprevisão é empregada diariamente na vida cotidiana, ou seja, toda vez que uma situação ulterior torna-se apta a ensejar uma situação de desequilíbrio, nasce uma proposta de modificação desta relação, não é verdade?

Os romanos se referiam à teoria como cláusula rebus sic stantibus. À época surgiram os primeiros textos legais no escopo de limitar o desequilíbrio contratual, manter a função social dos contratos, ainda que para tanto fosse necessário mitigar a autonomia da vontade das partes. No direito Canônico a motivação final seria a “moral cristã”, que considerava injusto o lucro derivado de alteração de situação posterior àquela em que a avença foi contratada.

A base teórica permaneceu pouco modificada ao longo de seu desenvolvimento, apenas sua parte externa (aplicação) foi modificada. Os juristas da idade média defendiam a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos de execução diferida, pois inegável é a possibilidade de que a atmosfera de celebração do contrato pode ser uma, porém a de sua execução/cumprimento pode ser outra, bem diferente.

No Código Civil de 2002, a teoria da imprevisão foi expressamente positivada nos artigos 478; 479; 480 e 317. No entanto não se encontra dispositivo correspondente expresso no código antecessor. Alguns doutrinadores renomados  defendiam que o antigo Código Civil reconhecia a teoria em seu artigo 1.226, Inciso I.

Após a publicação da Lei da Liberdade Econômica e a inserção do artigo 421-A ao Código Civil, se reforçou um antigo entendimento já amplamente discutido na literatura, “estabelecendo” o princípio da paridade e simetria dos contratos civis e empresariais até surgirem elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, podendo neste caso:

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

Na verdade, o recente dispositivo materializou o entendimento que já prevalecia sobre o tema, acerca da excepcionalidade da medida ser analisada sob o manto da imprevisibilidade, boa-fé, equilíbrio contratual e suas consequências às partes.

Porém a ideia inicial da Lei da Liberdade Econômica era muito mais abrangente, pois visava mitigar fortemente o Princípio da Intervenção Mínima através do uso de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, sem dialogar com antecedentes doutrinários e jurisprudenciais. Os artigos 480-A e 480-B, frutos da MP nº 881/2019, que foram posteriormente revogados pela própria Lei da liberdade Econômica, tratavam da possibilidade de revisão contratual em relações interempresariais.

Deu-se, portanto, um acertado passo atrás, privilegiando a autonomia da vontade das partes no momento de contratar e consequentemente ao Princípio da Intervenção Mínima. Oportuno destacar que a revisão contratual em relações civis e empresárias carece de um maior rigor para ocorrência de intervenção judicial do que nas relações de consumo. Tanto é que diversos fenômenos econômicos — variação cambial, inflação, plano econômicos -, não são aptos a caracterizar tal “imprevisão”.

Fato inegável é que o atual momento enseja e dá legitimidade à revisão de diversos contratos, e que ao longo da história a teoria da imprevisão ganha força nos tempos de crise, tanto é verdade que a partir do século XVIII a teoria da imprevisão esteve afastada do olhar dos tribunais, ressurgindo na Primeira Guerra Mundial, sobretudo no âmbito da jurisprudência .

Em tempos de “guerra” contra a Covid-19 não há dúvidas que muitos contratos serão revistos, no entanto segue imprescindível a necessidade de existir uma inequívoca mudança substancial da base contratual, assim como a comprovação da impossibilidade de adimplemento. Acima de tudo, a fim de não levar ao Poder Judiciário uma avalanche de discussões jurídicas indecifráveis, deve prevalecer o bom senso nas negociações.

Henrique Telles Vargas é especialista em Direito Empresarial.

leia também

Artigos

Direito Real de Habitação

No momento da perda do cônjuge, muitos aspectos jurídicos precisam ser considerados, especialmente quando se trata do imóvel que era a residência do casal. É

© 2020 Stefanes Advocacia. Site Criado pela Agência Logo Direito

Quero entrar em contato