Vera Chemin: Imparcialidade e decisões sobre audiências de custódia

Vera Chemin: Imparcialidade e decisões sobre audiências de custódia

A decisão do ministro Luiz Fux em deferir a liminar no âmbito da ADI 6.305, entre outras no âmbito da ADI 6.298 (ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros), suspendendo a eficácia do § 4º, do artigo 310, do Código de Processo Penal modificado pela recente Lei nº 13.964/2019 (denominada de “lei anticrime”) e que dispõe sobre a ilegalidade da prisão pela não realização de audiência de custódia no prazo de 24 horas foi fundamentada em sua inconstitucionalidade material.

Fux alegou que o prazo acima feria o princípio da razoabilidade, uma vez que, o dito dispositivo considera ilegal a prisão como consequência jurídica imediata, caso aquela audiência não seja realizada em tempo hábil e desconsidera as dificuldades práticas locais e logísticas enfrentadas respectivamente por várias regiões do país e de operações policiais de considerável porte.

Ademais, continuou o ministro, a expressão “motivação idônea” é uma categoria aberta e portanto abstrata, possibilitando interpretações diversas que dificultariam a aplicação daquele dispositivo e que mereceriam o debate e decisão do Plenário da Corte.

 Algum tempo atrás, em agosto de 2015, Fux foi o Relator da ADI 5.240 (ajuizada pela Associação dos Delegados da Polícia do Brasil) com pedido de medida cautelar, arguindo sobre a inconstitucionalidade de todos os dispositivos do Provimento Conjunto nº 03/2015, da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que havia disciplinado entre outros temas, as audiências de custódia no âmbito daquele Tribunal.

 Como se tratava de um Provimento, a Requerente defendeu que o regramento das audiências de custódia, por ter natureza jurídica de normas processual, dependeria da edição de lei federal, cujos projetos de lei já estariam tramitando no Congresso Nacional.

 Dessa forma, o Provimento seria inconstitucional por estar suprindo lacuna legal e extrapolando o poder regulamentar daquele Tribunal, além de outros argumentos elencados na peça.

Em síntese, os fundamentos de Fux na referida ADI ratificaram a legalidade do Provimento do Tribunal da Justiça, uma vez que seriam normas regulamentadoras de natureza administrativa e não inovavam a legislação existente sobre o tema, ao contrário, apenas as disciplinavam, para a maior eficácia e eficiência dos atos normativos do Tribunal de Justiça de São Paulo, no que foi acompanhado pela maioria do Plenário daquele Tribunal, incluindo as demais impugnações que foram igualmente indeferidas.

 Afirmou Fux em sua fundamentação:

 “Logicamente, esse prazo de 24 horas para a conclusão do procedimento em tela poderá ser alargado, desde que haja “motivação idônea”. Assim, por exemplo, em Municípios que não sejam sede de comarca ou cujo acesso seja excepcionalmente difícil, poderá não ser possível a apresentação do preso em 24 horas. Também no caso de o mesmo auto de prisão em flagrante envolver vários presos ou várias testemunhas, poderá não ser viável a sua finalização dentro de tal prazo. Outra situação que poderá gerar a impossibilidade” de apresentação do preso em 24 horas se configurará quando ele precisar de atendimento médico urgente, com eventual internação” (pg. 20).

Observe-se que Fux usou o mesmo argumento inserido na atual ADI 6.305, pgs. 7 e 8 no âmbito da atual ADI 6.298 que, entre outras inconstitucionalidades arguidas pela Requerente, destaca-se as audiências em custódia, objeto da presente discussão.

Fux segue na mesma direção:

“A ilegalidade da prisão como consequência jurídica para a não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas fere a razoabilidade, uma vez que desconsidera dificuldades práticas locais de várias regiões do país, bem como dificuldades logísticas decorrentes de operações policiais de considerável porte. A categoria aberta “motivação idônea”, que excepciona a ilegalidade da prisão, é demasiadamente abstrata e não fornece baliza interpretativa segura para aplicação do dispositivo” (pgs. 7 e 8).
“(e2) Medida cautelar concedida, para suspensão da eficácia do artigo 310, §4°, do Código de Processo Penal (Inconstitucionalidade material)” (pg. 8).

E conclui:

“Nesse ponto, entendo que, uma vez oportunamente instruído o processo quanto à realidade das audiências de custódia em todo o país, o Plenário poderá decidir o mérito, inclusive, sendo o caso, fornecendo balizas interpretativas mais objetivas para as categorias normativas nele incluídas. Por ora, a eficácia do dispositivo deve ser suspensa para se evitarem prejuízos irreversíveis à operação do sistema de justiça criminal, inclusive de direitos das defesas” (pg.42).

Ex positis, concedo a medida cautelar requerida para suspender a eficácia do artigo 310, §4°, do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei n° 13.964/2019” (pg.42).

Embora os contextos jurídicos das duas ADI’s contenham tema igual, as demandas eram totalmente diferentes.

 Na ADI de 2015, Fux decidiu que:

“da simples leitura das normas colacionadas acima, evidencia-se o seu caráter exclusivamente administrativo, dispondo o tribunal, no exercício da sua autogestão, sobre a organização e funcionamentos dos seus órgãos judiciais, impondo novas rotinas cartorárias e disciplinando o modo pelo qual o serviço judiciário será prestado, mormente na fase de transição até a total implementação das audiências de custódia em todas as unidades jurisdicionais do TJSP” (pg. 34).

Exaurido o exame de cada um dos dispositivos que compõem o Provimento atacado, constata-se que os seus artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º limitam-se a regulamentar previsões legais e convencionais já referidas, sem extrapolar ou contrariar o conteúdo dessas normas, representando exercício lícito de poder regulamentar que a todas as autoridades administrativas é outorgado, para o fiel cumprimento da lei” (pg.34). 

“Desta sorte, embora seja inadmissível a ação direta de inconstitucionalidade no que toca à parte meramente regulamentar do Provimento atacado, consigno a plena legalidade daquele ato normativo, que está em total harmonia com as normas convencionais e a legislação processual vigentes, sendo obrigatória, consectariamente, a realização da audiência de apresentação desde logo e em todo o território nacional” (pg.37).

 “Ex positis, conheço em parte da ação e, nessa parte, julgo improcedente, indicando a adoção da referida prática da audiência de apresentação por todos os tribunais do país” (pg.37).

 É como voto.”

Portanto, as decisões de Fux, embora em demandas diferentes são exatamente iguais, sendo constatada a preocupação da ilegalidade da prisão, se não for feita a audiência de custódia no prazo de 24 horas, prazo este, que Fux defendeu o seu alargamento, apresentando os mesmos argumentos nas duas ADI’s.

A diferença é que na primeira ADI, Fux indeferiu a liminar requerida pela Polícia porque o Provimento era legal, indicando a prática das audiências de custódias com o alargamento do praço e na segunda ADI (atual), Fux suspendeu a liminar (questionável sob o ponto de vista constitucional e legal e que deverá ser objeto de debate e julgamento pelo Plenário), mas utilizou os mesmos argumentos da primeira ADI (coerentes).

Sendo assim, Fux não contrariou a sua própria decisão, nem a do colegiado do STF na primeira ADI, até porque o Plenário o acompanhou, assim como não contrariou a sua própria decisão na atual ADI, uma vez que a sua fundamentação é harmônica com a da primeira ADI.

Por outro lado, ele poderia ter a competência de contrariar a sua própria decisão, caso isso tivesse acontecido, a exemplo da recente decisão do presidente Toffoli que revogou a sua própria decisão correspondente à suspensão de todos os processos judiciais, cujo compartilhamento de dados da Receita Federal e Coaf teriam sido praticados sem autorização judicial, no RE-1.055.941-SP, com repercussão geral reconhecida.

 A esse respeito é importante ressaltar que Toffoli também suspendeu em medida cautelar, o compartilhamento de dados previsto legalmente, tal como Fux o faz agora, o que leva a se deduzir logicamente, que o ativismo judicial esteve presente nas decisões dos dois ministros e não apenas na decisão de Fux, conforme observado por Lenio Streck em seu último artigo.

A crítica precisa ser justa e imparcial para todos.

Ademais, conforme já se afirmou, a decisão de Fux tem caráter provisório (tal qual a de Toffoli), uma vez que se tratam de medidas cautelares e o mérito deverá ser analisado e julgado pelo Plenário do STF, o qual deverá ratificar a redação do § 4º, do artigo 310, do CPP previsto pela nova Lei nº 13.964/2019 ou modifica-lo impondo-lhe a sua interpretação, por meio de sua jurisprudência.

Essa observação foi também inserida por Fux, no sentido de o Plenário discutir sobre a possibilidade de alargamento do prazo das audiências de custódia, pelas razões ali elencadas.

Por último é conveniente observar que Fux não poderia jamais revogar uma decisão do Plenário em sede de ADI, pois se trata de controle concentrado de constitucionalidade em que a decisão do Plenário é soberana e vinculante para todos.

Contudo, isso também não aconteceu.

Vera Chemim é advogada constitucionalista, mestre em direito público pela FGV.

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